top of page

ESTADO DE GLÓRIA 

2017

Curadoria: Gala Berger (ARG)

Ficha técnica

Fotografia: Cristina Gross

Body art: Graciela Sternett

Filmagem: Aline Daka

 

“O que é exigido pela consciência de si não é, para dizer a verdade, a destruição da ordem das coisas. A ordem íntima não pode destruir verdadeiramente a ordem das coisas (como também a ordem das coisas nunca destruiu a ordem íntima até o fim). Mas esse mundo real chegado ao auge de seu desenvolvimento pode ser destruído, no sentido de que pode ser reduzido à intimidade. Em outros termos, a consciência não pode fazer com que a intimidade lhe seja redutível, mas pode retomar ela mesma, ao inverso, suas operações, de modo que no limite estas se anulem e que ela mesma se encontre rigorosamente reduzida à intimidade”

 

George Bataille, A teoria da religião

 

Na ação, meu rosto é perfurado por sete catéters com pérolas vermelhas na ponta. No peito, uma camiseta com as palavras ESTADO GLÓRIA em tinta dourada. Ao lado, uma mesa preta com 4 pênis de cera. Após retirar as agulhas de meu rosto, o sangue escorre manchando o chão e a camiseta. Arrumo meu corpo para queimar os pênis de cera. Coloco-os sobre um fogareiro que sustenta uma bacia de banho de criança aquecida. O fogo nasce e derrete os pênis. Caminho até o mapa da Europa em negativo que compõe uma das obras na galeria, e lá despejo a cera.

 

Texto curatorial:

Três considerações sobre À Sombra da Cruz

 

Os despossuídos

Como entender que a rebelião não se produz? Qual é o motivo pelo qual os trabalhadores em piores condições não conspiram contra o poder dominante? Qual é o segredo no profundo da mente que interioriza a submissão imperante? Como há pessoas que inclusive defendem a injustiça, a desigualdade, a opressão e a escravidão contemporânea? Por que o egoísmo é a base da diferença entre uns e outros, e por que esses outros o 

suportam? Por que as mulheres participam com cumplicidade das estruturas do patriarcado? Como é 

possível que haja corpos cujas vidas e mortes sejam só grãos de areia no tempo midiático? O que canta uma mãe para seu filho no berço para que adormeça o suficiente para que nunca se rebele contra uma vida de ante mão amputada e explorada? O que diz um pai a seu filho para que abaixe a cabeça sem meditar? Como se criou o mito da eterna felicidade e de um futuro que nunca chega? A quem convém a despolitização e o silêncio? O que há em nós que o suporta dia a dia? Há uma sombra cuja extensão conseguiu para si a negação de todo o humano, preparando assim um terreno fértil para a desapropriação - a precarização e a conversão - para a mercantilização de cada uma das partes do corpo e a redução de sua experiência a uma mera coisa em uma grande lista de repressões. Uma dialética da imobilidade que nos impede de construir uma 

resistência real e coletiva. O neoliberalismo cresceu forte graças à essa sombra, conseguiu o impensável, garantir uma legião de indivíduos submissos, expectantes e ávidos por uma experiência individual, alienada e árida que funciona como um grande catalisador para o consumo. Enquanto alguns consomem, outros muitos são consumidos, sem que isso represente um problema moral para ninguém. E não apenas isso, também se aceita sem questionamentos o medo radical que representa sentir-se com privilégios em uma sociedade que não os representa. Sua resposta é o desejo voraz de aniquilamento em direção ao despossuído, a 

personificação da ameaça escrita em água que simboliza esses olhos subjugados, acorrentados a fantasias que só respaldam sua aniquilação. Existe no entanto, no profundo da natureza espiritual, o germe de uma comunidade despojada de dogmas. Seus ícones são a parte visível que deve ser destruída, alterada, 

reinterpretada; assim também como sua parte invisível que é uma grade que nos molda à sua lente, uma estrutura criada por inúmeros crimes históricos, que só poderão ser esquecidos quando o templo que os fundou caia. 

 

A Mãe Virgem

Com o mito de uma mãe virgem se cria um corpo que não nasceu do prazer, uma figura que desacredita da condição feminina e a delega a mero recipiente, a construção sem voz de uma subjetividade servil. Como dizia León Rozitchner, a mulher-mãe na santa trindade, é deformada no Espírito Santo, insubstancial, assexuada, etérea, portanto excluído o qualitativo feminino do triângulo, sendo translocada em sua forma abstrata a Deus. Essa trindade termina ocultando a carne materna e afastando assim aos seus filhos do instinto de sua primeira infância. Esta oposição da própria natureza, gera um vazio - um desamparo - uma insensibilidade que debilita, favorecendo a dominação teológica. O espectro patriarcal domina assim cada um dos aspectos da descorporização, que precede em ausência ao estatuto da mãe, para logo transformar-se em um corpo que pode ser expropriado e convertido em mercadoria.

 

Castigo e corrupção

Outra tradição impressa em nossa maneira de perceber contextos, vem acompanhada da dualidade 

pecado-castigo. Esta equação implica que tudo que se consiga deve ser acompanhado de sofrimento. Caso contrário, se algo for muito prazeroso, deve ser castigado. Da mesma forma, o trabalhador que não falta um dia ao trabalho, mesmo quando se encontre doente será recompensado, enquanto que aquele que ouse ter uma vida própria será duramente mortificado. Este verniz moral preciosamente elaborado a base de 

preconceitos, inclui a capacidade para sentir-se com liberdade de apontar com o dedo e de exigir represálias. Qualquer alteração da forma ou da estrutura de algo leva a uma penalização que agrava a angústia, e esta é, sem dúvida, uma relação imposta. Assim mesmo a narração acarreta no estado de pureza, uma invenção que no caminho deixa todo aquele não ajusta a sua cosmovisão de lado. A obsessão midiática do castigo e 

escárnio público foi uma ferramenta da inquisição, a de humilhar ao corpo impuro e intensificar o sadismo, sobre tudo se este corpo era o de uma mulher, de uma pessoa não heteronormativa ou simplesmente de uma pessoa no escalão mais baixo da classe social.

 

Gala Berger

Porto Alegre, abril de 2017

bottom of page